Tenho um problema. Vários, na realidade. Mas vamos por partes.
Não sou grande coleccionadora. Sou mais uma acumuladora, de coisas particulares de que goste ou tenham algum interesse. Importa frisar que são poucos, muito poucos, os itens materiais que me suscitem este interesse. Algures umas notas de vinte escudos, algumas moedas, uns poucos de selos. Não lhes presto atenção, não os exibo, sequer os mantenho devidamente acondicionados. Daí que jamais me poderia considerar coleccionadora do que quer que fosse. Sempre nutri um fascínio grande, porém, por todo o tipo de artigos de escrita e desenho, tenho uma paixão assumida por papel, na sua virgindade múltipla de possibilidades, a promessa de poder conter o mundo, um retrato de alguém querido, um poema, anotações atentas floridas de termos científicos. Blocos, cadernos, quase como embriões de livros. Telas, pincéis, bisnagas de tintas, encerrando misteriosos devaneios pouco estudados e sempre improvisados. Lápis, sobretudo os de grafite escura e macia, mares de sombras, gradientes, vidas ondulantes a duas dimensões. Pelo que, não no sentido do coleccionismo do objecto, pristino e intacto na sua embalagem original, acolhido por pequenas vitrines ou álbuns, mas antes pela adoração do potencial que encerra e pelo gosto de manusear e tentar canalizar as energias que me povoam para a criação de alguma coisa, detenho um número considerável de, resumamos, lápis e esferográficas.
Os lápis são amigos fiéis, inutilizados apenas se quebrados ou finda a sua vida. Já as esferográficas, do alto da sua engenhosa mecânica, são manhosas. Ora podem rebentar nas mãos, ora cessam o seu fluxo, ora secam, ora nos deixam mal quando estávamos a contar com o seu desempenho inequívoco, a meio duma assinatura, um postal de aniversário, uma ideia fantástica… Deixam marcas mais profundas, são definitivas como as palavras ditas, que não podem voltar para trás. Nem corrector, nem borracha, nada faz recuperar a candura perdida do papel em branco, depois de ter sido profanado por uma esferográfica. São complicadas. Pouco versáteis. Têm tampas, ou molas, ou outras complicações acessórias. Em constante desafio, a provocar, a pedir que lhes pegue e as faça exsudar um rasto da sua essência.
E o que fazer com as esferográficas que se recusam a escrever? Este é o meu problema. Jazem ali umas quantas dezenas. Já tentei todos os métodos que o instinto dita; roçá-las com energia, enfurecendo-as, enfurecida, insistindo; Aguardando pacientemente que inclinadas mais para lá ou para cá a tinta se voluntarie para descer e escorregar por onde deve, por onde tem de ser, que não foi feita para outra coisa. As esferográficas foram feitas para escrever, ou para desenhar. Foram feitas para mim e para funcionarem sem sobressaltos. E eu gosto realmente delas, das grandes, das pequenas, pretas, azuis ou vermelhas. Sem preconceitos. A tal paixão pelos pequenos universos que concentram. Mas elas falham-me. E deixam assim de me ter utilidade, que belas nem tanto assim, não me consolam a estética. Para além de existirem mundo fora milhões de esferográficas, novas pelo menos para mim, perfeitamente funcionais e possivelmente mais afinadas, com melhor tom, correctas e respeitadoras. Prontas a cair nas minhas mãos e a permitir que faça delas instrumento, batuta, pauta. Pulsantes de vigor e ansiosas por dançar e rodopiar entre papéis frenéticos ou melancólicos. Mas estas, as que não tenho como minhas, não estão impedidas de entrar e me acharem. Pode acontecer não ter já espaço para elas, por estar ocupado com as outras, as casmurras, cheias de tinta que não querem dar. E sendo assim não procurarei novas esferográficas, seria uma busca condenada à partida. Que dilema! Valerá esperar que as canetas disfuncionais um dia se reinventem, curadas, que lhes agrade mais o tempo ou o espaço, a superfície ou o abstracto, e tornem a escrever? As palavras que dirão poderiam ser substituídas pelas palavras de outras, frescas, portentosas, imaturas? Que hoje estão mancas, não me servem de nada, estendem-se ao longo da sua complacente inércia a ocupar o meu espaço, o meu precioso e selectivo espaço. Mas por elas tenho a estima própria de quem se afeiçoa a uma presença e só aprende o quanto no dia em que aquela passa a ausência.
A isto se resume uma das minhas mais pertinentes questões do momento: devo deitar fora as esferográficas que não escrevem e libertar espaços nas gavetas, ou manter a fidelidade aos arrebatamentos e guardá-las, tentando talvez mais tarde o seu regresso?
Ah, e é claro, quem diz ‘esferográficas’ diz ‘pessoas’…
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